"Magnífica reprodução" de um dos mais belos mapas da cartografia renascentista europeia, feito por um português, exposta com outras 30 obras do Renascimento na Torre do Tombo. Já é possível folhear o atlas em que pela primeira vez vemos Macau.
“Quase-original”,
desvenda a legenda na vitrina que guarda pergaminhos, iluminuras e os
sonhos revistos da expansão portuguesa. É que nesteGabinete
das Maravilhas as
honras são feitas às reproduções “magníficas” de códices,
livros de horas, de medicina ou tratados que nos indicam qual o
caminho para a felicidade, mas também o atlas de “um mundo partido
em dois”. O clone do Atlas
Universal de Fernão Vaz Dourado,
de 1571, é a estrela da exposição na Torre do Tombo, em Lisboa,
para poder ver a muito elogiada cópia do pergaminho onde pela
primeira vez aparece Macau e que é também o primeiro manuscrito em
pergaminho submetido agora a estudos de pigmento.
Clones,
cópias de alta qualidade de documentação histórica ou
“obras-primas” conservadas nas bibliotecas e museus mundiais é o
que faz o espanhol Manuel Moleiro, fundador da editora M. Moleiro. É
responsável pela reprodução das 18 folhas do Atlas
de Fernão Vaz Dourado,
a obra maior do autor e descrita como uma das mais belas da
cartografia renascentista europeia, numa edição única de 987
exemplares certificados. Nela são respeitadas desde as técnicas de
pintura miniaturista renascentista que eram apanágio de Vaz Dourado
até às marcas do tempo deixadas no pergaminho. São novos
manuscritos a partir de manuscritos centenários.
Esta é
a primeira reprodução do atlas, que integra o acervo do Arquivo
Nacional da Torre do Tombo e que agora passará não só a estar ao
dispor (por um preço de cerca de 2000 euros) de quem o queira
estudar, mas sobretudo manusear e folhear como até aqui era quase
impossível. Os clientes da M. Moleiro são sobretudo e precisamente
as universidades, bibliotecas, museus, mas também particulares entre
os quais papas, reis, presidentes e, lê-se no portefólio da
editora, prémios Nobel como Saramago.
Foi
Manuel Moleiro que, em 2006, abordou a Torre do Tombo para esta
empreitada, que ao longo de anos e com um conjunto de peritos de
várias faculdades e museus portugueses esmiuçou desde a biografia
do próprio atlas até às suas cores, tintas e iconografia. Tal
resultou numa outra publicação, um livro de 200 páginas que junta
vários estudos com tradução em quatro línguas com “uma
perspectiva inovadora, mas sem perder a própria memória da peça e
do que ela representa”, como descreveu Silvestre Lacerda,
subdirector-geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, em
conferência de imprensa. Não estando em risco nem em mau estado,
explica, “era fundamental estabilizar o Atlas” original cuja
“encadernação estava a criar algumas tensões no pergaminho e
corria o risco de provocar desintegração de parte dos pigmentos”
com o tempo.
Um mapa é antes de mais uma construção cultural e, como um texto, tem leituras e abordagens diversas. Quem tem o melhor mapa ganha a guerra
João Carlos Garcia, Universidade do Porto
Sobre
a exposição O
Gabinete das Maravilhas: atlas e códices dos melhores arquivos e
bibliotecas do mundo,
o que diz Moleiro? Na Torre do Tombo expõem-se agora cópias de
“manuscritos que são talvez os mais importantes feitos na Europa".
O manuscrito mais antigo é um tratado de medicina (Tratactus
de Herbis,
de 1440), e encerra com um manuscrito árabe de 1582, o Livro
da Felicidade.
Inaugurada
esta terça-feira ao final do dia com uma conferência na presença
do Presidente da República e do secretário de Estado da Cultura, a
exposição integra cerca de 30 obras. Com entrada livre, prolonga-se
até 21 de Junho na Torre do Tombo, mostrando o resultado de dois
anos de trabalho, das fotografias do atlas original por Luís Pavão
à sua desencadernação, passando pela comparação com outros mapas
da época. Este é um dos seis atlas conhecidos de Vaz Dourado,
que trabalhava a partir de Goa, sendo que apenas dois estão em
Portugal, este na Torre do Tombo e outro na Biblioteca Nacional.
Esteve na Cartuxa de Évora desde o princípio do séc. XVII, até
chegar ao Tombo nos anos 1930.
O
professor da Universidade do Porto João Carlos Garcia foi o
coordenador científico do livro e se inicialmente estava renitente
em debruçar-se sobre o atlas por se tratar de mais um exemplar da
“época áurea da cartografia portuguesa”, amplamente estudada, o
“romance policial” que foi este novo estudo crítico levou-o e à
equipa a outras abordagens que não a “leitura nacionalista da
cartografia portuguesa”. “Um mapa é antes de mais uma construção
cultural e, como um texto, tem leituras e abordagens diversas”,
lembrou, porque “quem tem o melhor mapa ganha a guerra”.
Descobriu-se que a encadernação do atlas foi feita em quatro
momentos entre o século XVI e o século XX, que há cores e
pigmentos típicos do românico português (como o verde-garrafa) que
indicam que a obra usou de facto tecnologia portuguesa. Também se
destaca que a paleta do Atlas inclui dos mais ricos e duradouros
pigmentos da época. Defende-se a tese, corroborada pela análise aos
pigmentos, de que Vaz Dourado, sobre cuja misteriosa biografia pouco
se descobriu, seria antes de mais um iluminador-cartógrafo e não o
contrário.
E ali
está então um mapa que “é Tordesilhas”, diz João Carlos
Garcia ao PÚBLICO, dominado por Portugal e Castela, com aparições
tímidas dos vizinhos europeus e de chineses e árabes, com “uns
autocolantes”, brinca sobre as cartelas e brasões que decoram o
atlas, “para tapar a ignorância”. O mapa mostra também os
vazios – “o que ainda não se sabe, o miolo" de muitos
continentes e grandes extensões das suas costas.
Trata-se
também de um atlas especial por ser “uma obra de aparato”, como
descreve Silvestre Lacerda, e por isso resistiu até hoje - ainda que
com duas páginas em falta, uma das quais o frontispício, mas de que
sobreviveram reproduções e descrições. “São presentes de
Natal, obras de luxo, não era com eles debaixo do braço que iam à
Índia ou ao Brasil”, sorri João Carlos Garcia na apresentação
aos jornalistas, lembrando que a insistência na manufactura e nas
técnicas plásticas renascentistas e a resistência à impressão e
consequente reprodução tornaram os atlas de Vaz Dourado em obras
preciosas.
Os
custos de todo o trabalho e da exposição foram suportados pelo
editor espanhol. A exposição inclui outros três atlas portugueses
“quase-originais” - oAtlas
Miller,
de 1519, o Atlas
Vallard,
de 1547, e o Atlas
Universal de Diogo Homem,
de 1565, todos em colecções no estrangeiro, da Rússia à
Califórnia.
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